Formação em medicina no país é ‘entregue’ à iniciativa privada

By David Monteiro
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“A saúde é direito de todos e dever do Estado”. O artigo 196 da Constituição Federal especifica que cabe ao governo a elaboração de políticas sociais e econômicas que garantam o acesso universal e igualitário ao serviço. Porém, na prática, a formação dos médicos, que são os principais agentes nesse processo, é praticamente “entregue” à iniciativa privada: 76,73% das vagas de capacitação desses profissionais no país estão em instituições de ensino privadas. Em Minas, a proporção é de 72%, segundo a Demografia Médica no Brasil em 2023, divulgada pela Associação Médica Brasileira (AMB).

Em todo o Brasil, há 41.805 vagas para medicina, sendo 32.080 em instituições particulares e 9.725 em públicas. Em Minas, são 5.028 assentos nos cursos de medicina, sendo 1.405 vagas em 15 instituições públicas e 3.623 em 33 particulares. Um cenário que agrava a escassez de médicos e que será problematizado nesta segunda reportagem da série “Do ‘apagão’ de médicos ao caos na saúde”.

Para especialistas, a baixa oferta de vagas em universidades bancadas pelo poder público, aliada ao alto custo de formação e necessidade de dedicação integral por, no mínimo, seis anos, torna a profissão acessível para poucos, com impacto direto na disponibilidade de profissionais.

“Se o governo assumisse essa formação e colocasse regras para que os formandos com a ajuda da União atuassem durante uma fase no Sistema Único de Saúde em áreas onde não tem médicos, parte do problema da rede seria resolvida. Porque o foco tem que ser o atendimento para a população, mas hoje faltam especialistas para todo lado”, diz a presidente do Conselho de Saúde do Hospital Infantil João Paulo II, Denise Martins Ferreira. Ela acompanha de perto como está o atendimento na ponta, as dificuldades e as dores de quem espera dias por um atendimento especializado.

Do outro lado, quem decide ser médico no Brasil precisa estar disposto e ter condições para pagar caro. Segundo a AMB, o valor médio da mensalidade cobrada por escolas médicas privadas é de R$ 9.040. O preço varia de R$ 4.980 a R$ 12,8 mil. Em uma conta simples, tendo como referência seis anos e pagamento durante dez meses a cada ano, para concluir o curso, os estudantes precisam desembolsar mais de meio milhão de reais, ou R$ 542,7 mil.

“Obviamente que quem pagou isso para estudar vai querer retorno do investimento. Para isso, vai ficar em grandes centros e prestar serviços que paguem melhor. E isso não é no SUS, onde mais faltam profissionais”, diz o especialista em gestão de saúde Odarlone Orente.

O cenário fica ainda mais complexo para a parcela dos estudantes que tiveram algum apoio para estudar, como aqueles que recorreram ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). “Esses formandos já saem com a responsabilidade de pagar uma dívida grande. Então, eles não vão escolher especializações que dão baixo retorno financeiro, como a pediatria clínica. E, como resultado, falta esse tipo de especialista no mercado”, explica o coordenador do curso de medicina da Faseh, Núncio Antônio Araújo Sol.

O Ministério da Educação (MEC) foi procurado para falar sobre políticas voltadas para a formação de médicos. O órgão do governo federal não havia se pronunciado sobre a demanda até a publicação desta matéria.

Espaço ocupado por poucos: único negro da turma de médicos
Médico há sete meses, o mineiro Juan Pablo de Souza Silva, 24, conseguiu um espaço ocupado por poucos: estudante de escola pública, de origem humilde, entrou na faculdade de medicina na primeira tentativa após fazer curso pré-vestibular comunitário. Hoje, atuante em UPA, ele usa as próprias vivências para humanizar o trato com o paciente.

“É muito importante ter médicos de todas as origens nas unidades de saúde. Eu, por exemplo, tenho uma preocupação em pensar no contexto do paciente. Eu não prescrevo remédios caros para quem eu sei que custou a ter dinheiro de ônibus para pagar chegar até a UPA”, diz.

Juan foi o único estudante negro a se formar na turma dele, e não é por acaso: só 28,2% dos estudantes de medicina brasileiros são negros. Mas esta não é a única estatística em que ele é minoria na profissão.

Focado em se especializar em urologia, ele não pretende abrir mão do SUS, enquanto apenas 24,6% dos médicos residentes têm intenção de fazer o mesmo. “A população precisa muito”, justifica.

Para especialistas, é preciso regular a oferta de médicos
Em um contexto de falta de médicos em todo o país, a política de formação dos profissionais passa a ser questionada, e especialistas sugerem uma regulação maior do setor por parte do governo federal. “Precisamos inverter a estrutura da formação, abrir mais vagas na rede pública. O profissional não pode pensar só em recuperar o dinheiro investido. Precisamos ainda dar oportunidade para todo cidadão ter acesso a essa formação.

A saúde não pode ser vista apenas como mercadoria, ela precisa entender que cuida da vida das pessoas. Não se pode pensar na saúde como lucro apenas. É um cuidado com a vida”, alerta a diretora geral do Hospital Risoleta Tolentino Neves, Alzira de Oliveira Jorge, que é professora da Faculdade de Medicina Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para Alzira, a área precisa ser regulada pelo governo para que haja um direcionamento das especialidades disponíveis no mercado. Ela explica que há necessidade de ter um volume grande de médicos generalistas para atender municípios onde não há estrutura para atendimentos de alta complexidade, que demandam equipamentos disponíveis em cidades que são referência em saúde. Já os especialistas, na visão dela, deveriam ser formados conforme a necessidade de cada região e com aval do governo.

“Nos países mais desenvolvidos, essa formação é regulada. Eu formo de acordo com a necessidade, como é feito quase no mundo inteiro. Mas, aqui, os médicos definem quantas vagas em cada especialidade. Isso tem mais a ver com o mercado do que a nossa necessidade de saúde”, diz ao se referir às especializações feitas após a formatura que direcionam áreas de atuação dentro da categoria.

De acordo com dados da pesquisa Demografia Médica do Brasil 2023, entre os principais fatores determinantes para a escolha da especialidade para médicos residentes entrevistados estão interesse pessoal, bom relacionamento com médicos da mesma especialidade, prestígio da instituição da residência, oportunidade de emprego e carreira, além de remuneração.
O neurocirurgião Felipe Mendes, especialista em gestão de saúde pelo hospital Albert Einstein, também defende a realização de políticas públicas para ajustes de formação, além de regulação de oferta e demanda de médicos.

“Um ponto importante não é só a falta de médicos, mas a má distribuição deles dentro da rede. O ideal seria termos um sistema nacional integrado de análise de disponibilidade de especialistas, como no Canadá. A quantidade de pessoas que formam é definida conforme as necessidades. Para tornar atraente a ida para qualquer parte do país, seria necessário criar uma carreira de Estado, nos moldes da de juízes e promotores”, explica.

Alternativa do governo é o Mais Médicos
O Mais Médicos é a principal aposta do governo federal para reduzir o déficit de médicos onde há vazios assistenciais no país. A promessa da pasta, enviada em nota à reportagem, é que parte desses profissionais já comece a atuar até o fim deste mês em algumas localidades. Ontem, o Senado aprovou a Medida Provisória (MP) que recria o programa. Agora o texto vai à sanção do presidente Lula (PT).

“A pasta distribuiu as vagas de acordo com base em critérios de vulnerabilidade social, como municípios em extrema pobreza, locais de difícil provimento de vagas e regiões com alto quantitativo de moradores que dependem exclusivamente dos serviços do SUS”, explicou o ministério, sem detalhar as localidades mineiras beneficiadas. Segundo a subsecretária de Atenção à Saúde de BH, Taciana Malheiros, a capital fez adesão ao programa e cadastrou 14 vagas para esses profissionais, que ajudarão a reduzir parte do déficit de 10%.

O governo federal adotou algumas estratégias para tentar tornar o edital atrativo para os médicos brasileiros, como “oportunidades de auxílio no pagamento da dívida do Fies; complemento do auxílio do INSS às médicas que se tornarem mães durante o período de alocação no programa; incentivo de fixação em locais de difícil acesso e oportunidades de especialização e mestrado com foco em medicina de família e comunidade”, diz a nota. Na última segunda-feira, o ministério lançou edital, com previsão de 10 mil vagas para os municípios, na modalidade de coparticipação com o gestor local. Até hoje, os municípios poderão indicar o número de vagas necessárias para a região.

Vagas em cursos cresceram 5 vezes mais na rede particular
Desde 2003, o número de vagas anuais em cursos de medicina disponíveis em universidades públicas do país cresceu 64% – de 5.917 para 9.725. Já nas instituições privadas, o salto foi de 358% – de 7.001 para 32.080.

Para o coordenador do curso de medicina da Faseh, Núncio Antônio Araújo Sol, a abertura das instituições de ensino cumpre um papel relevante ao ajudar na distribuição regional de médicos. “A contratação de novos cursos, sejam públicos ou privados, leva médicos para essas regiões desprovidas de especialistas e ajuda a fixá-los nesses locais”, afirma.

Dados da Demografia Médica do Brasil 2023 mostram que a maior parte das graduações de medicina, 52,9%, estava localizada no interior dos Estados

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